Cabo de guerra: como o novo Plano Diretor revela a disputa de interesses na partilha de Fortaleza
Norma básica de planejamento urbano deve reavaliar “leis sem justificativa” aprovadas na Câmara. Ao mesmo tempo, vereadores seguem aprovando projetos. Em pelo menos seis anos de reavaliação, moradores reclamam de baixa escuta. Do lado dos técnicos, informações básicas ainda não foram coletadas
FONTE: JORNAL O POVO (https://mais.opovo.com.br/reportagens-especiais/plano-diretor-fortaleza/2025/06/30/cabo-de-guerra-como-o-novo-plano-diretor-revela-a-disputa-de-interesses-na-partilha-de-fortaleza.html)
O que os moradores (não) sabem do Plano Diretor
Um caso explicita bem a relação complexa entre interesses de moradores, apontamentos técnicos e a participação da Câmara na montagem do Plano Diretor de Fortaleza: o imbróglio da Refinaria Lubrificantes e Derivados do Nordeste (Lubnor), no Cais do Porto.
A empresa foi alvo de tentativa de privatização durante o Governo de Jair Bolsonaro (PL). O processo acabou não concluído, uma vez que 30% do terreno pertencia à Prefeitura, que barrou o negócio. Foi uma “luta vencida”.

Três anos depois, em junho de 2025, representantes da Lubnor foram à Comissão Especial — Matérias que Alterem o Plano Diretor (CE-PDDU), da Câmara Municipal, pedir mudança no zoneamento da empresa para que ela não saia do Cais do Porto. A retirada ocorreria em 2027, devido ao selo de “nocivo ao meio ambiente” que o negócio possui.
Técnicos do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Fortaleza (Ipplan), como a vice-presidente Lia Parente, indicaram na reunião da Câmara que o empreendimento dificulta a ocupação da Praia do Futuro.
Segundo ela, interrompe “conectores, do transporte, das vias, do caminhar das pessoas, exatamente obstaculizado por essa área que ainda é de uso industrial”. Também foi citada preocupação com a segurança dos moradores e a estranheza de uma refinaria dessas proporções no meio da cidade.
A Câmara teria outra percepção. Questionado, o presidente da CE-PDDU, Benigno Júnior (Republicanos), citou a questão legal.
Refinarias podem sim atuar em Fortaleza, o que não pode são empresas de combustível, diz ele, se referindo à lei estadual de tancagem. O vereador, no entanto, não indicou com todas as letras que a Comissão irá acatar os argumentos da empresa e deixá-la lá.
Isso porque a Petrobrás, dona da Lubnor, alegou que o conjunto dos produtos da empresa a enquadra como “incômoda” ao meio ambiente e não “nociva”. Ainda citaram um programa de descarbonização para substituir o gás natural, fonte da geração de energia, pelo biometano. O projeto só seria possível caso houvesse a permanência no território de Fortaleza.
Nesta ebulição, moradores da região sequer tinham ciência do imbróglio. Quando questionada se sabia da situação da Lubnor, a membro da Comissão Associação Titan, Jamile Souza, perguntou assustada: “É remoção da gente?”.

A pergunta dela expõe duas grandes reclamações de moradores locais: a exclusão das decisões que modificam a região e a luta constante por permanência, do local de trabalho e de moradia. Assim como Jamile, membros do comitê da Petrobrás, moradores que trabalham na empresa e quatro outros líderes da região também não sabiam de nada.
A saída ou não da Lubnor diz respeito diretamente ao Plano Diretor, motivo pelo qual a empresa foi logo à Comissão pedir vista. Em um processo participativo, a população esteve, em princípio, excluída das discussões da empresa de refinaria no âmbito da atualização do documento.
Somente uma semana após contatado, Anailton Fernandes, líder comunitário e membro do comitê de líderes sociais da Petrobras disse que seria realizada uma reunião sobre o zoneamento da empresa.
É importante ressaltar que saídas ou permanências de empresas no Cais do Porto, especialmente nas comunidades locais, envolvem questões muito maiores. A região ao mesmo tempo teme e apoia as empresas.
O medo surge pela falta de regularização fundiária de diversas casas da região, o que intensifica uma disputa por território. Já a esperança vem dos empregos gerados. A relação da comunidade Cais do Porto/Serviluz/Titanzinho é muito próxima dos empreendimentos. São tantos instalados ali que moldaram a configuração social e cultural, para além da economia da região.
O próprio nome da comunidade Serviluz vem da antiga “Serviço de Luz e Força de Fortaleza”, localizada na região. Ela forneceu energia elétrica à Capital até meados dos anos 1960. Mesmo extinta, o nome permaneceu e, ironicamente, até hoje algumas casas da comunidade com problemas de luz e saneamento. Até o Farol, há décadas abandonado e agora em reforma, não acende.
Pelo menos 1.200 empresas estão ativas no Cais do Porto. Há pequenos negócios, mas muitos empreendimentos enormes, dentre eles a Lubnor. A quase venda por Bolsonaro gerou comoção popular: boa parte dos 550 empregos diretos e cerca de 2.000 indiretos que ela gera são ocupados por moradores do bairro. Por conta disso, habitantes ouvidos defendem com força que a empresa permaneça no bairro.
Anailton Fernandes, citado mais acima, falou da Lubnor como geradora de “empregos e ajudando a economia local com impostos”. Segundo ele, a “comunidade vê como uma boa empregadora, e não há conversa por aqui sobre desastres ambientais ou impactos graves. Pelo contrário, a galera valoriza os benefícios”.
Outro líder comunitário ouvido, Antônio José – o Dudé, trabalha na Lubnor. Ele é vice-presidente do Conselho Gestor da Zeis Cais do Porto e presidente da Associação Titan.
O representante e Jamile, esposa dele, defenderam a empresa. Disseram ter uma flexibilidade grande com eles e exaltaram os empregos gerados. “Entrei com 21 anos e hoje estou com 50. As coisas que eu conquistei foram com o salário de lá”, disse Dudé.

E completou: “Então, no dia que a Lubnor sair daqui de Fortaleza, do Serviluz, vai ser uma catástrofe para nós, porque, dos que trabalham lá, 90% são moradores”, disse, em meio a um processo de discussão em andamento, do qual não sabiam.
A falta de incentivo pela participação” das comunidades na montagem do PDPFor, na verdade, foi fortemente criticada. No Cais do Porto e Serviluz, por exemplo, seis líderes comunitários falaram com a reportagem.
Citaram as reuniões como bagunçadas: as demandas locais seriam recebidas com projetos já prontos, que ignoravam o solicitado. O mesmo foi confirmado por diversos outros membros de conselhos de Zeis , comunidades e demais organizações da sociedade civil. O processo chegou a resultar em protestos dos moradores em diversas reuniões.
“Parecia uma creche de tanto barulho”, disse Jamile Souza. “A impressão que dava é que você chegou num lugar em que você não entende o que está acontecendo. É como se fosse obrigado a assinar que você teve presente e acabou, para que eles validem o que aconteceu”, comentou Kátia Lima, vice-presidente da Associação Titan.
Os encontros eram marcados em horário próximo ao dos expediente, em locais distantes – não condiziam com a rotina de trabalho dos moradores. Nem todos que queriam, conseguiam comparecer, segundo os relatos. Por fim, ainda que os produtos das reuniões estejam disponíveis no portal do Plano, os moradores disseram não ter acesso a eles: não foram informados de como acessá-lo.