O governador Camilo Santana (PT) anunciou uma reforma administrativa e alterações substanciais na correlação de forças e doutrinas do governo cearense. Na prática, isso significou o alinhamento com sua política de segurança pública, voltada para uma forte e letal “guerra contra o crime organizado”, introduzindo doutrinas de choque dentro dos estabelecimentos penais
Em suas razões históricas de longo prazo, uma maneira de compreensão das prisões brasileiras pode ser delineada pela constituição autoritária e escravocrata de nossa sociedade, sobretudo identificando os processos de dominação senhorial e subordinação militar dos povos. Esses mecanismos de controle social reativam práticas autoritárias baseadas em saberes sobre a relação com os setores empobrecidos da população e de tipos acusados de problemáticos: índios bravos, quilombos, vadios, bêbados, prostitutas, loucos, guerrilheiros, bandidos, entre outros.
No caso do estado do Ceará, a política de contenção de grandes contingentes populacionais considerados problemáticos é um fenômeno de longo prazo. Entre diversos exemplos na história, dois surgem como emblemáticos. No início do século XX, campos de concentração1 foram usados para impedir retirantes das impiedosas secas de chegarem à capital, Fortaleza. Em 1932, foram contabilizadas 73.918 pessoas nos campos em todo o Ceará. Nas periferias de Fortaleza, esses espaços eram símbolos de medo para as classes dominantes, ainda que com maior controle policial, pois eram cenários tomados pela visão de pessoas famintas e cadáveres mortos pela fome, sede e doenças, situação que podia ser bastante comum2 – semelhante às cenas vistas anos depois nos campos da Europa pós-guerra, excluindo-se apenas o dolo do extermínio sistemático praticado pelo Estado nazista. O uso indiscriminado de violência letal aconteceria em 1937, quando forças policiais e do Exército do governo de Getúlio Vargas exterminaram entre quatrocentas e mil pessoas de um pequeno povoado no Crato, chamado Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. O caráter igualitário e comunal-religioso incomodou as oligarquias dependentes da exploração aguda do sertanejo.
Nos últimos três anos, os massacres prisionais impressionaram pela magnitude das cenas de horror, definindo uma nova generalização alcançada pela violência dos grupos armados na região Norte e Nordeste.3 A explosão da população carcerária brasileira é uma questão central para a compreensão dos problemas contemporâneos que cercam o sistema prisional, que passou a ter uma influência mais evidente sobre os centros urbanos a partir das conexões entre bairros e prisões. A linha política de recrudescimento penal e ampliação dos tipos criminais com previsão de privação de liberdade, acompanhada do aprimoramento da segurança, das técnicas de controle, das formas e procedimentos da rotina penitenciária tiveram como consequência a expansão das condições degradantes de custódia para um número crescente de pessoas presas pelo sistema de segurança pública e justiça criminal.
Essa criminalização resultou em diversas maneiras de reação das pessoas identificadas como inimigas do Estado. É o caso contemporâneo dos acusados de serem faccionados com atuação nos bairros e prisões do Ceará, figurando enquanto enquadramento das vidas matáveis4 nos processos que propõem a higienização social e o aumento do encarceramento, mecanismos de ampliação das desigualdades e da violência sistêmica.5 É certo dizer que a violência não se resume às contendas entre bandos que disputam o controle territorial das periferias e das celas. Porém, a ascensão do Primeiro Comando da Capital (PCC), do Comando Vermelho (CV) e da Guardiões do Estado (GDE), nas prisões e bairros de Fortaleza, foi reveladora de conflitualidades no cenário urbano, identificando os clientes preferenciais das prisões e das práticas de extermínio.6
No pleito de 2018, sem grandes surpresas, o governador Camilo Santana (PT), reeleito com 79,94% dos votos válidos, anunciou uma reforma administrativa no Poder Executivo do Ceará e alterações substanciais na correlação de forças e doutrinas do governo estadual, sentidas principalmente na administração penitenciária. Na prática, isso significou o alinhamento com sua política de segurança pública, voltada para uma forte e letal “guerra contra o crime organizado”, introduzindo doutrinas de choque dentro dos estabelecimentos penais cearenses. No dia 22 de dezembro de 2018, foi anunciada a nomeação do policial civil e especialista em gestão prisional Luís Mauro Albuquerque, que na ocasião era conhecido “linha-dura” na administração da Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejuc) do Rio Grande do Norte e por sua breve passagem no sistema prisional cearense como interventor responsável por conter uma grave crise ocorrida em julho de 2016. Seu procedimento, chamado “doutrina do contato zero”, busca o enfrentamento das facções e as pessoas que se projetam como liderança dentro das prisões. Inclusive, aposta na “mistura” de presos até então separados por seus grupos de identificação e afinidade, situação que fez evoluir rapidamente nas jornadas de atentados do início do ano passado.
No dia 3 de janeiro de 2019, uma bomba explodiu em uma coluna de um viaduto da BR-020, na cidade de Caucaia, comprometendo a estrutura. Até o dia 4 de fevereiro foram registrados 283 atentados em 56 municípios, com pelo menos treze dias ininterruptos de ataques na capital e no interior, a maior onda da história. Foram enviados agentes da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), além de 420 policiais e 92 viaturas da Força Nacional de Segurança Pública. A retórica de guerra foi alimentada como forma de reação e aceitação ao incremento da repressão dentro e fora das prisões no Ceará. Como se isso não fosse suficiente, diversas denúncias e incontáveis evidências anunciaram o uso sistemático de castigos físicos e violência psicológica como meio de controle e submissão da população carcerária – para citar apenas um exemplo, o uso da fome e da sede7 como fundamentos da submissão dos corpos encarcerados.
Individuais e coletivos, os castigos tornaram-se procedimentos rotineiros para impor sanções ao menor sinal de enfrentamento nas unidades prisionais masculinas e femininas. Sabe-se sobre impedimentos e restrições nunca antes vistos para a realização do controle social feito por organizações como a Pastoral Carcerária do Ceará e a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Ceará, e nas inspeções feitas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), entre outros. Impedimentos para a aproximação física e escuta de relatos sobre a rotina das unidades prisionais, bem como condições degradantes para a população carcerária tendo em vista o uso ostensivo de ordens para impor posições de rendição para os presos – sentados e de cabeça baixa –, spray de pimenta, espancamentos com cassetetes, bombas de efeito moral, privação de sol e de visita social, a “tranca”,8 entre outros, são os recursos mais usados contra qualquer ato de quebra dos procedimentos do silêncio e da ordem.
É fundamental perceber o endurecimento das políticas de segurança penitenciárias e sua extensão também para as famílias, acusadas e criminalizadas como “envolvidas” com facções. Compostos quase todos por mulheres, os protestos são desencorajados com ameaças de castigos dentro das unidades prisionais contra seus entes queridos. Visitas íntimas estão extintas sob o contato zero. A Portaria Institucional n. 009/2019 consolidou um regramento para os dias de visita e de entrega de malotes (jumbo), com regularidade estabelecida pela alternância de quinze dias para cada atividade, isto é, duas vezes por mês. Apenas é permitida a entrada de uma garrafa de plástico transparente com 1 litro de água mineral, uma garrafa de plástico transparente de refrigerante guaraná de 1 litro, quatro sanduíches tipo misto – recheio de presunto e queijo – e uma maçã. Os itens devem ser acondicionados em sacos transparentes, consumidos durante a visita e não devem ficar dentro da unidade prisional, terminando a prática de doação para presos sem visitas. Reter os alimentos depois do término pode resultar na ida para a tranca. As medidas draconianas estão expressas nas dificuldades para apoiar a pessoa presa.
De fato, as notícias de dentro narram maior presença de fuzis e escopetas exibidos por agentes penitenciários, e tensão repetida na ida do preso ou da presa até o local da visita social. O procedimento consiste em apresentar o preso submisso por uma escopeta apontada para sua cabeça, o qual, por sua vez, deve sempre mantê-la baixa, respondendo “sim, senhor”, quando solicitado, para em seguida ser entregue para a visita. No final, a imagem da caminhada melancólica de mulheres com rostos tristes e angustiados com o endurecimento dos procedimentos do contexto prisional marca definitivamente essa rotina. Sem reconhecimento oficial, foi imposta uniformização para as famílias: roupas claras, para atender à exigência do agente na portaria; qualquer alteração resulta na negativa de entrada. Foi formado um mercado informal no entorno das unidades prisionais, onde é possível comprar sacos plásticos por R$ 2 ou R$ 3 e alugar roupas e sandálias do tipo havaianas de cor branca. O impedimento sumário de entrada nas unidades é um problema que semanalmente leva um número de mulheres a retornar para casa, seja por falta de item regular do uniforme, seja por algum castigo imposto do lado de dentro. A falta de informações é regra geral, por isso as mulheres criam grupos para trocar notícias e afetos.
Os bandos faccionados apresentam a violência como meio para a conquista do poder e da gestão dos mercados ilegais, e, ao que parece, o Estado está assumindo esse papel ao destacar seus recursos para o aprofundamento da militarização da segurança pública.9 O uso da ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)10 – autorizando o emprego de poder de polícia para as Forças Armadas –, a promulgação da Lei de Organizações Criminosas,11 a criação da Força Nacional de Segurança Pública12 e do Sistema Penitenciário Federal,13 entre outros, tornaram cada vez mais rotineiro o policiamento de exceção que aparece na atualidade como uma resposta legítima, com efeito de naturalizar a situação de conflito, bem como as características de intervencionismo e militarização. A consolidação da FTIP é uma expressão disso. As medidas empregadas largamente no sistema prisional cearense renderam elogios de Jair Bolsonaro, ao dizer que o governo petista do Ceará teria provado que a violência não se combate “com direitos humanos”.14 Os apelos do governador reeleito para tipificar os atentados como terrorismo indicam esses esforços.15
Agamben16 destaca o uso da suspensão de direitos para a contenção de crises, aumentando as incertezas sobre os limites legais de ações estatais, que inclusive podem justificar a morte de cidadãos em nome da segurança, gerando um estado de vulnerabilidade permanente. O alardeado combate e guerra contra o narcotráfico e organizações criminosas sustentam leis, dispositivos e mecanismos extrajurídicos (tortura e extermínio) que caracterizam o uso da força – inclusive letal – contra grupos relacionados como ameaças para a soberania do poder estatal. No início do século XXI, as doutrinas colocadas em prática oficialmente são divulgadas como um “case de sucesso” pela apologia da racionalização de recursos e aumento da sensação de segurança do sistema prisional, repercutindo na redução do número de fugas, diminuição da influência de facções e unidades prisionais menos insalubres, por exemplo.
Pensando com Mbembe,17 o mecanismo penitenciário emerge como espaço e condição estratégica em que se exerce o direito de matar, de deixar viver ou de subjugar à morte pessoas consideradas inimigas. As guerras contemporâneas assumem formas diferentes, não exatamente sendo travadas entre Estados soberanos, mas ocorrendo por meio de bandos armados sob a máscara estatal ou não e definindo políticas de inimizades para justificar o extermínio de grupos tidos como alvos potenciais, base para a necropolítica dos territórios de exceção no Ceará.
*Ítalo Barbosa Lima Siqueira é doutorando em Sociologia pela UFC (bolsista Capes), pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e do Ilhargas – Cidades Políticas e Saberes na Amazônia (Ufam).
1 O que dizer da afirmação de Aimé Césaire sobre os campos de concentração, que antes mesmo de serem instalados pelo partido nazista na Europa – continente que por séculos pretendeu o domínio civilizatório do mundo – já eram largamente utilizados nas colônias e contra as populações sujeitadas pela hegemonia do racismo branco, ariano e cristão?
2 Hoje, esses campos desativados estão situados em importantes e populosos bairros da capital do Ceará.
3 Eventos ocorridos principalmente no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte.
4 Fábio Mallart e Rafael Godoi, “Vidas matáveis”. In: BR 111: a rota das prisões brasileiras, Veneta/Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 2017.
5 Byung-Chul Han, Topologia da violência, Vozes, Petrópolis, 2017.
6 Luiz Fábio S. Paiva, “‘Aqui não tem gangue, tem facção’: as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil”, Cadernos do CRH, v.32, n.85, p.165-184, 2019; Suiany Moraes e Ítalo Lima, “As margens como centro no bairro Benfica: falas da violência e do matar na cidade de Fortaleza”, Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.18, n.53, p.143-159, ago. 2019.
7 Fernanda Valente, “Juiz do Ceará manda estado regularizar fornecimento de água em presídio”, Consultor Jurídico, 26 abr. 2019.
8 Local reservado para detentos que estejam em medida disciplinar.
9 Sobre a militarização da segurança pública, ver Luis Antônio Francisco de Souza, “Militarização da segurança pública no Brasil”. In: Luiz Claudio Lourenço (org.), Criminalidade, direitos humanos e segurança pública na Bahia, Cruz das Almas, UFRB, 2014.
10 Dispositivo regulado no artigo 142 da Constituição Federal.
11 Lei n. 12.850/2013.
12 Criada pelo Decreto n. 5.289, de 29 de novembro de 2004.
13 Colocado em prática em 2006.
14 “Bolsonaro diz que Camilo Santana provou que não se combate violência com direitos humanos”, O Povo, 9 abr. 2020.
15 Vicente Vilardaga, “É preciso endurecer a lei antiterrorismo”, IstoÉ, 22 fev. 2019.
16 Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boitempo, São Paulo, 2004.
17 Achille Mbembe, Política da inimizade, Antígona, Lisboa, 2016.