Em artigo divulgado nesta quarta-feira, 07, o ex-presidente da Petrobrás, José Ségio Gabrielli, afirma que ainda é possível corrigir os rumos da política nacional de energias renováveis para que a transição energética não agrave as desigualdades regionais do Brasil

Por José Ségio Gabrielli, profesor aposentado da UFBA e pesquisador do INEEP

Não parece haver mais dúvidas de que o hidrogênio deverá desempenhar um papel maior nos processos de transição energética, tanto para minimizar flutuações da geração elétrica renovável, quanto para mobilidade e como insumo nos processos industriais, especialmente em setores de difícil abatimento de emissões de gases de efeito estufa (GEE).

A transição energética ganhou tração na agenda mundial com o avanço das políticas para tentar evitar o aquecimento global, principalmente depois do Acordo de Paris de 2015, que fixou limites superiores para o aumento da temperatura global.

E, para evitar o aquecimento do planeta uma das ações fundamentais é realizar uma profunda mudança no uso das fontes primárias de energia e reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Nesse caminho, o hidrogênio (H2), especialmente o hidrogênio verde (H2V), é um candidato à substituição dos combustíveis fósseis.

O mundo moderno depende fortemente da mobilidade de pessoas e da capacidade de transporte de cargas, além de se ancorar no uso crescente de eletricidade. Os serviços de mobilidade e da eletricidade são extremamente dependentes do uso de combustíveis fósseis como petróleo, gás natural e carvão.

Alternativas aos combustíveis fósseis

Se, por um lado, os combustíveis fósseis possibilitaram acelerar o crescimento econômico, as emissões resultantes intensificaram o aquecimento global e provocam mudanças climáticas, ampliando as possibilidades de eventos extremos e ameaçando a humanidade.

Com esse cenário, os países começaram a regular o uso dos fósseis, estimulando sua substituição por fontes primárias para carregadores com menor impacto sobre o clima.

Para a eletricidade, cresceram os estímulos às fontes eólicas e solares. Já no caso dos transportes, emergiram como alternativas a eletrificação da frota, o uso de biocombustíveis e pesquisa e desenvolvimento de novas rotas tecnológicas, tanto nos motores, corpo dos veículos e, especialmente, nos novos combustíveis. Um exemplo são as rotas para o hidrogênio (H2), que podem vir a substituir o carbono nos carregadores de energia.

O hidrogênio, especialmente aquele proveniente do processo de eletrólise da água a partir de fontes de energia renovável, não tem praticamente qualquer emissão de GEE e sua utilização estabelece elos entre a eletricidade e a mobilidade. O H2 tanto serve para minimizar os efeitos da geração intermitente, inerente às fontes eólicas e solares, quanto pode servir para o desenvolvimento de células de combustível e na produção de seus derivados combustíveis sintéticos.

Do ponto de vista da mobilidade, a redução de emissões segue em geral três caminhos: (i) a eletrificação das frotas, (ii) a substituição dos combustíveis e (iii) melhoria da eficiência dos sistemas de mobilidade, seja através de alterações no uso de equipamentos, manejo dos modais, redução das rotas ou diminuição do volume de viagens.

Estudo de 2022, realizado pelo Imperial College de Londres, simulou os efeitos das várias políticas sobre a efetiva redução de emissões na cidade de Londres até 2050.  A pesquisa concluiu que a redução das rotas e diminuição do tempo de deslocamento, com políticas de controle de tráfego e redução do uso de veículos é muito mais eficiente do que a eletrificação da frota, via utilização de veículos elétricos com 100% de energia renovável, na redução acumulada de emissões. Enquanto os veículos à bateria (BEV) reduziam as emissões em 2%, o controle do tráfego as reduzia com maior eficiência.

Outra conclusão do estudo foi que políticas de incentivo ao uso de outros combustíveis sintéticos, redução de peso de veículos e retirada antecipada de veículos mais velhos eram menos eficazes do que alterações no planejamento urbano e nas políticas de comando e controle sobre as viagens e o deslocamento das pessoas na cidade de Londres até 2050. Um dos elementos fundamentais para isso é a existência de um grande estoque dos atuais veículos de combustão interna (ICEs), que remanescerão no meio do século, mesmo com a expansão dos veículos elétricos e novas políticas.

O caso brasileiro

A conclusão sobre a importância do estoque de veículos existentes sobre a redução de emissões pode nos ajudar a pensar o caso brasileiro, onde há um grande estoque de ICEs, mas que parcela significativa de nossos veículos leves são flex-fuel, o que nos dá uma vantagem comparativa em relação a outros mercados.

Os combustíveis comercializados no Brasil já contêm 27% de etanol na gasolina e 13% de biodiesel no diesel, reduzindo significativamente as emissões. Esses mandatos do biodiesel e do etanol ainda devem aumentar, de acordo com as políticas governamentais anunciadas.

Nossa realidade deve nos levar a refletir sobre os limites de uma política de eletrificação de nossa frota e se devemos acompanhar modelos internacionais sem adaptações ao mercado nacional. Para o caso brasileiro, a expansão dos biocombustíveis pode ser mais eficaz na redução das emissões de GEE, quando comparada à generalizada substituição dos veículos de combustão interna por veículos elétricos. Há muito mais espaço para os veículos híbridos com biocombustíveis.

Mesmo na Europa essa política, que parecia querer banir os ICEs do continente a partir de 2025, começa a sofrer inflexões, com a admissão da manutenção dos veículos à combustão, desde que utilizem combustíveis sintéticos e de baixo carbono, como os derivados do hidrogênio.

Duas rotas tecnológicas intensivas no uso de H2 se destacam: (i) a rota orgânica e (ii) a rota termoquímica. A rota orgânica utiliza o H2 nas unidades de hidrotratamento (HDT) das refinarias para transformar a matéria prima orgânica em combustível. A rota termoquímica precisa do H2 produzido a partir da eletrólise da água para, combinado com o CO2 capturado, produzir o metanol, de onde derivam o SAF, o e-diesel e a e-gasolina.

O hidrogênio é chave para essas duas rotas, que vão além dos biocombustíveis de primeira geração. Ademais, vale ressaltar que o H2, quando combinado com o nitrogênio, produz a amônia e os fertilizantes nitrogenados, moléculas essenciais para pensar a segurança alimentar no país.

Políticas públicas para a indústria de energia no Brasil

É preciso aprimorar as políticas públicas e qualificar o debate regulatório nacional, caso contrário corremos o risco de perda das oportunidades. As novas políticas públicas para a indústria de energia no Brasil, ainda em gestação, precisam de sistemas de coordenação e governanças robustos para lidar com esses desafios.

A Nova Indústria Brasil (NIB), assim como o Plano Nacional de Hidrogênio (PNH2) e o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) são políticas que precisarão de aprimoramentos, em particular no balanceamento da escolha das rotas, ampliando a importância da rota termoquímica.

Outro desafio inerente à elaboração de políticas industriais de longo prazo e que está no centro do debate sobre viabilidade e ganho de escala nessas novas rotas tecnológicas é a questão dos custos industriais de equipamentos e produção desses insumos, em especial do hidrogênio.

Na cadeia do hidrogênio é evidente que ainda há um diferencial de custos na produção do H2 cinza, produzido com a reforma do vapor de metano (SMR), quando comparado à produção do H2 azul, com captura de carbono, e do H2 verde, a partir da eletrólise. O primeiro, apesar de maior emissor, ainda é mais barato. No entanto, a expansão de crédito e investimentos em pesquisa e desenvolvimento nessa cadeia globalmente deve impulsionar uma redução dos custos na produção do H2 verde, por exemplo.

O Brasil e, em especial, a região Nordeste está alcançando custos de produção altamente competitivos na produção de energia elétrica a partir de fonte eólica onshore, o que pode alavancar a cadeia do H2 na região. Temos hoje a previsão de capacidade de produção de H2 verde no nordeste brasileiro com o menor custo mundial, em virtude de seu potencial eólico.

Se atualmente, os principais centros de custos na produção de H2 verde via eletrólise são a geração elétrica renovável e equipamentos, em especial eletrolisadores, os avanços tecnológicos globais e o potencial crescimento da capacidade de produção de eletrolisadores e nosso baixo custo de geração de energia eólica colocam o Brasil em uma posição vantajosa e competitiva nesse segmento.

Por fim, outro ponto de atenção são as políticas industriais no setor de energia. A despeito do potencial da região Nordeste, a ênfase de nossas políticas está nos segmentos dos biocombustíveis e do biorefino, localizados principalmente nas regiões do Sudeste, Centro-Oeste e Sul do país. É preciso equilibrar essa balança, com objetivo de que a transição energética não agrave as desigualdades regionais existentes hoje no Brasil.

Na Nova Indústria Brasil, anunciada pelo governo, a rota termoquímica não tem destaque, uma vez que a NIB praticamente se concentra na rota orgânica. A sua Missão 5 se refere à transição energética pela “bioeconomia”, ainda que haja uma ligeira referência ao H2 e à descarbonização. Na versão atual do Plano Nacional de Hidrogênio (PNH2), a ênfase é no H2 de baixo carbono, com pouca diferenciação do que o PNH2 chama de H2 renovável e o de baixo carbono, cuja principal característica é o acoplamento de unidades de captura e sequestro de carbono ao H2 cinza, feito a partir do gás natural no Brasil.

Atualmente, o H2 cinza, com alta emissão de GEE, é amplamente produzido e consumido nas refinarias da Petrobras. Entretanto, no seu Plano Estratégico 2023-2028, a empresa não tem referências explícitas ao H2 verde, ainda que faça louvores à transição energética e à descarbonização de suas operações.

Na regulação do sistema de certificação, mesmo que necessariamente tenha que ser genérica nesse momento, há algumas afirmações específicas que misturam os vários tipos de H2 de baixo carbono, não estimulando aqueles com menores níveis de emissões. Destaque-se o próprio limite para o enquadramento em baixo carbono (4kgCO2/kgH2) que é muito mais alto do que poderíamos obter, se houvesse um estímulo especial para o H2 a partir da eletrólise de água.

É possível corrigir os rumos. As políticas novas brasileiras ainda estão em fase de gestação e de montagem de sistemas de coordenação e governança. Espero que não se percam as oportunidades.

Referências

ABA, M. M.; SAUER, I. L.; AMADO, N. B. Comparative review of hydrogen and electricity as energy carriers for the energy transition. International Journal of Hydrogen Energy, 57, n. p. 660-678, 2024.   Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0360319924000363.

WINKLER, L.; PEARCE, D.; NELSON, J.; BABACAN, O. The effect of sustainable mobility transition policies on cumulative urban transport emissions and energy demand. Nature Communications 14, n.  2357, 2023.   Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41467-023-37728-x.