“Não nos resta dúvidas: estamos diante de mais um crime de lesa-pátria”, afirma o conselheiro eleito da Transpetro, Homero Pontes, sobre a desregulamentação do afretamento de embarcações estrangeiras imposta pelo “BR do Mar”, o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, criado pelo governo Bolsonaro, por meio da Lei nº 14.301/2022. Leia a integra do artigo

Por Homero Pontes, representante dos trabalhadores no Conselho de Administração da Transpetro

Antes de resenharmos sobre a BR do Mar (programa criado pelo governo Bolsonaro para “incentivar” o transporte por cabotagem no Brasil), gostaria de te convidar a preambular sobre a criação da Transpetro e a importância da Marinha Mercante para a economia e soberania da nação. A história começa com a Emenda Constitucional nº 9, de 1995, mudou o setor petrolífero brasileiro, permitindo que atividades deste segmento da economia, até então sob exploração exclusiva da Petrobrás, pudessem ser exercidas por outras empresas.

Esse novo dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 9.478/97 (Lei do Petróleo). A partir de então, qualquer empresa, independentemente da origem de seu capital, desde que constituída sob as leis brasileiras, pode realizar atividades de exploração, produção, transporte, refino, importação e exportação do petróleo.

O art. 65 dessa Lei estabeleceu que a Petrobrás deveria constituir uma subsidiária com atribuições específicas de operar e construir seus dutos, terminais marítimos e embarcações para transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, ficando facultado a essa subsidiária associar-se, majoritária ou minoritariamente, a outras empresas.

Assim, em 1998, em cumprimento a esse artigo específico, a Petrobrás criou a Transpetro.

O início das atividades da Transpetro se deu em três fases:

1ª Incorporação da Brasil Shipping, em setembro de 1998, que passou a se chamar Fronape International Company;

2ª Incorporação e gestão operacional dos navios da Frota Nacional de Petroleiros – Fronape, iniciada em maio de 1999 e concluída em 1º de janeiro de 2000, a frota incorporada continha 58 Navios;

3ª Absorção da gestão operacional dos Terminais e Dutos da Petrobrás, a partir de maio de 2000, por meio de contratos de arrendamentos.

Ou seja, ao contrário dos navios, os terminais e dutos da Petrobrás não foram incorporados como ativos da Transpetro, o que não estava em linha argumentativa apresentada pelo governo, em 1997, que logo levaram à criação da Companhia.

Feito esse breve histórico, vamos a BR do Mar.

O aumento da demanda por embarcações de cabotagem, ou seja, a expansão desse modal na matriz de transporte, é preterida há tempos, setor empresarial brasileiro, tal anseio é justificado pela nossa privilegiada dimensão continental. Na tentativa de incrementar essa atividade, o Governo Federal enviou para o Congresso um projeto de lei, hoje já sancionada Lei 14.301/2022 (Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem), popularmente conhecido como BR do Mar, vale ressaltar que essa lei substitui o Marco Regulatório da cabotagem no Brasil (Lei 9.432/1997).

Para entendermos sobre a BR do Mar se faz necessário assumir a complexidade do assunto e compreender o contexto geopolítico histórico. O debate da criação da BR do Mar, se acelera com a estratégia da diplomacia Brasileira, no Governo Michel Temer, juntamente, a Argentina com Macri, em 2016, em dar maior viabilidade ao Tratado de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que há quase 20 anos.

Em 2018, com o sinal verde de Temer, o então Ministro das relações Exteriores, Aloysio Nunes (PSDB), retomou as negociações por parte do Brasil. Tal retomada acendeu o sinal de alerta, quanto aos riscos, entre as empresas Brasileiras, Argentinas e Uruguaias de Cabotagem. Pouco depois, em 2019, já no governo Bolsonaro, o tratado foi assinado com a liderança do ministro da mesma pasta, ocupada por Ernesto Araújo. O acordo foi tratado como uma grande vitória da diplomacia bolsonarista, uma vez que na época o Brasil carecia de confiança mundial, mas a euforia em relação ao acordo deu lugar as preocupações das nações europeias em relação a postura antiambientalista preconizada pelo chefe do executivo, tal postura gerou desgastes diplomáticos.

Ainda em 2019, o governo numa tentativa de angariar apoio na comunidade europeia através do Primeiro Ministro Húngaro, tem as suas expectativas frustradas, pois a então comissária europeia de Comércio, Cecilia Malmström, afirmou que a complexa ratificação do acordo não aconteceria antes do natal de 2020.

Preocupados, líderes do agronegócio brasileiro, reuniram-se no 7º Fórum Caminhos da Safra, em Brasília (DF), em setembro de 2019, e como esperado pouco foi discutido sobre medidas para reduzir as práticas antiambientalistas do setor. Ao participar do fórum, o coordenador de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura, Cleber Martinez, afirmou que, em um primeiro momento, estaria sendo avaliada a possibilidade de tramitação de um projeto como Medida Provisória para que possa ser avaliado mais rapidamente pelo Congresso Nacional, batizado de BR do Mar.

Em suma, o dispositivo que integrava o acordo entre Mercosul e União Europeia, antes apresentado como cooperação, com supostas contrapartidas, a começar pelos mesmos direitos portuários garantidos para as embarcações brasileiras em território europeu, passou a ser um projeto a ser apreciado a toque de caixa, unicamente pelo legislativo brasileiro, visando garantir benefícios ainda mais vantajosos do que aqueles debatidos previamente, na minuta do acordo de livre comércio entre Mercosul e a União Européia.

Em 2020, pelas mãos do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), então presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE), foi apresentado ao Congresso o Projeto de Lei nº 4199/2020 (BR do Mar), a ser votado em regime de urgência, incluindo diversos pontos controversos. Uma vez apresentado o PL, diversas categorias se manifestaram exigindo ressalvas no projeto, inclusive os caminhoneiros, que tiveram a promessa de retirada do pedido de urgência fracassada. Com rápida tramitação, o Projeto acabou aprovado nas duas casas legislativas e sancionado pela presidência da República em janeiro de 2022.

Quando da sanção do projeto, o Presidente vetou 3 itens:

  1. A obrigatoriedade de dois terços da tripulação das embarcações afretadas serem compostas por Brasileiros;
  2. A diminuição da alíquota do Adicional ao frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM);
  3. Recriação do Reporto, que suspende a cobrança do IPI, do PIS, da Confins e do imposto de importação na compra de máquinas, equipamentos e outros bens para terminais portuários.

O primeiro veto presidencial foi aprovado, já o segundo e o terceiro veto presidencial foram derrubados. Deste modo não haverá a obrigatoriedade de dois terços da tripulação ser brasileira, gerando mais desemprego. E ainda, sofreremos de uma substancial evasão fiscal para as empresas de cabotagem de bandeira estrangeira, tanto associada a esses pontos ainda temos profundas mudanças quanto ao FMM – Fundo da Marinha Mercante, reduziu-se substancialmente a receita para financiamentos de obras navais, além de prever o uso do Fundo para objetivos completamente alheios à Indústria Naval e à Marinha Mercante brasileiras. Contudo, os setores da economia nacional que o Projeto de Lei deveria, em tese, preservar foram deixados a mingua, comprovando o frontal ataque a classe de trabalhadores do setor marítimo Brasileiro e a toda falta de compromisso com a soberania da nação por parte da maioria dos nossos parlamentares.

Entendido o contexto geopolítico recente e o histórico da tramitação da BR do Mar, podemos agora questionar: O que muda com a BR do Mar? Quais os principais desdobramentos e possíveis complicações?

A legislação anterior a Lei atual previa que somente empresas que tinham sede no Brasil e que eram autorizadas pela Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) teriam permissão para operar serviços de cabotagem. Essas precisavam ter navios próprios, sejam importados ou fabricados no Brasil. As empresas brasileiras de navegação poderiam alugar embarcações com bandeira de outros países, mas isso só pode ser feito na proporção de metade da frota própria com a substituição de toda a tripulação por brasileiros.

Ou seja, se uma empresa tinha seis navios com bandeira brasileira, poderia alugar até três embarcações estrangeiras. Um navio de bandeira estrangeira só poderia fazer um frete se não houvesse nenhuma embarcação brasileira disponível para fazer o transporte daquela carga naquele momento. Esse navio seria alugado temporariamente, só para aquele frete.

Pela BR do Mar, as empresas não precisarão mais ter embarcações brasileiras. Ou seja, elas podem ter apenas um CNPJ e atuar alugando embarcações de outros países. O aluguel de embarcações estrangeiras poderá ser feito por tempo indeterminado, ou seja a BR do Mar ameaça gravemente a indústria naval brasileira, põe em risco as empresas nacionais, inclusive a Transpetro, que durante a pandemia já alienou 20 navios, e precariza as relações de trabalho para mitigar o chamado “Custo Brasil”.

O que a BR do Mar despreza é que, ao abrir o mercado para embarcações estrangeiras, conviveremos com as assimetrias já existentes entres as empresas estrangeiras e o Brasil, no que tange cargas tributárias e políticas monetárias, industrias e conteúdo local, que gerará um tratamento não isonômico desnecessário, entre navios afretados e navios produzidos no Brasil, uma vez que temos um arcabouço de estaleiros modernos e atualmente ociosos.

A participação do custo das embarcações no custo total da cabotagem gira em torno de 5%. Portanto um navio em torno de 10% mais caro por conta dessas assimetrias pretensamente relatadas quanto ao Custo Brasil, impactaria negativamente nos fretes na ordem de 0,5%, em contrapartida, geraria um efeito positivo na economia do pais.

Diversificar e reduzir a burocracia no modal aquaviário brasileiro para dar maior fluidez à circulação de mercadoria é uma demanda importante para o desenvolvimento da economia local, mas está evidente que o Projeto BR do Mar se faz desse relevante anseio para instituir vantagens a empresas estrangeiras, que dominam o trânsito de embarcações no cenário global.

Através da desregulamentação do afretamento de embarcações estrangeiras, com tripulações subjugadas a regimes de trabalho alheios ao direito brasileiro, sem nenhum tipo de investimento para aumentar a atratividade da indústria naval no país, estaremos entregues à volatilidade do cartel formado pelas mesmas empresas que estampam a grande maiorias dos contêineres em todas as paisagens portuárias dentro e fora do Brasil.

BR do Mar acabou sendo mais uma imposição do capital especulativo internacional, do mercado tóxico, no qual uma pretensa desburocratização, com um discurso de livre mercado, instituiu um cenário convenientemente propício para a consolidação de monopólios, que cedo ou tarde acabam cobrando seu preço, em dólar, no prato à mesa das famílias brasileiras.

Não nos resta dúvidas: estamos diante de mais um crime de Lesa-Pátria.