Meu amigo Carlos vai ao mesmo restaurante todos os finais de semana. Mas, de uns tempos pra cá, a cada 15 dias, os pratos de lá sobem de preço.

Carlos lembra que um ano atrás a mesma refeição custava uns 100 reais. Hoje, já tá em 130 reais. Na hora de cobrar a conta, Zé Maria, o garçom, mesmo que envergonhado, nunca esquecia dos seus 10%. Antes, Carlos lhe pagava 10 reais de gorjeta. Agora, com a refeição a 130 reais, paga 13 reais.

Mas meu amigo Carlos achou a solução para aliviar seu bolso: acabar com a farra do Zé! Não vai mais pagar os 10% de gorjeta. Me disse ele depois, todo contente: “A comida já tava era em 140 reais. Não paguei os 14 reais do Zé e só gastei 126 reais. Foi show!”. O Zé, coitado, usava o dinheiro das gorjetas pra ajudar no aluguel e nos remédios de casa. Mas, tudo bem, pensou Zé. “Vida que segue”.

No ultimo dia 7 de setembro, Carlos pôs sua melhor camisa da seleção brasileira e foi pra rua. Achou bonito ver aquele mar de verde-amarelo. Todo mundo berrando junto que autorizava o presidente a convocar as forças armadas pra “botar moral”, fechar o Congresso e o STF e botar pra correr a cambada de comunistas e corruptos que não estão deixando o Presidente governar. Vibrou quando o cara do carro de som defendeu o direito de só usar máscaras quem quiser, mesmo que isso possa incomodar alguém que tenha medo de pegar a tal da covid. O cara disse que a liberdade individual está acima de tudo. E achou genial a explicação que deram de como a China tá querendo dominar o Brasil através das vacinas e de como os índios são os verdadeiros culpados pelos incêndios na Amazônia.
Todo mundo foi orientado a se informar apenas pelo whatsApp e não acreditar em nenhuma notícia negativa de jornal ou televisão. “Essa história de rachadinha? De dinheiro que entra e sai das contas dos filhos do presidente? Tudo mentira! Tudo invenção do comunismo safado!” “A ex-mulher do presidente mora numa casa de mais de 3 milhões? Um monte de parente dela tava na folha de pagamento de assessores do presidente e dos filhos dele? Bom, se ela mora numa casa assim é porque pode. Ela fez por onde. E se os parentes dela foram contratados é porque era tudo gente competente e de confiança. Qual é o problema?”

Outro dia, Carlos ouviu o Presidente dizer que a culpa dos combustíveis estarem ficando tão caros era dos governadores. O mesmo bando de comunistas que obrigaram todo mundo a ficar trancado em casa, usar máscara e se vacinar à toa, por conta da gripezinha. O presidente explicou que os governadores cobram 25% de um imposto chamado ICMS que é calculado sobre o preço dos combustíveis. Esse percentual não sobe desde 2015. Faz 6 anos que está nos mesmos 25%. Mas quando a gasolina, o gás de cozinha e o diesel ficam mais caros, os governadores arrecadam mais. Assim, disse o presidente, solução era não dar mais esse dinheiro de imposto pra eles. A saída era fazer igual o que ele, Carlos, fez com a comida do restaurante.

Carlos achou aquilo brilhante. Achou mesmo que tinha havido uma transmissão de pensamento entre ele e o Presidente. Pouco importa se sem a arrecadação do imposto vai faltar dinheiro pra saúde, educação, segurança pública, moradia, cultura ou outras coisas. Pelo menos a gente vai ter uma gasolina um pouco mais barata por algumas semanas. E mesmo que o salário da gente não suba ou a gente continue desempregado, ao menos o gás de cozinha vai ficar com o preço parado alguns dias.

Carlos confia no Presidente e se ele disse que é assim mesmo, assim realmente é. Não há como ser diferente. O presidente disse que tinha que ter esses aumentos de vez em quando, porque o preço dos combustíveis aqui no Brasil tinha que acompanhar os aumentos que aconteciam lá fora, no exterior. Os nossos preços de combustíveis tinham que ser baseados no dólar, mesmo que a gente receba os nossos salários e nossos ganhos em reais. Era um sacrifício que a gente tinha que fazer para garantir o máximo possível de lucros para a Petrobras, pois esses lucros são divididos para seus acionistas e muitos deles são até estrangeiros, americanos. Gente boa e fina que não pode ficar assim na mão. Seus lucros são intocáveis. Sagrados mesmo.

Pelo raciocínio do Presidente, se daqui a alguns meses o preço dos combustíveis estiver ainda mais caro, a gente pode arranjar outro imposto pra cortar. Vai faltar um pouco mais de dinheiro pra gastar com saúde e educação, mas a gente garante que o preço da gasolina vai se segurar um pouquinho.

E a gente também pode ser criativo e pensar noutras formas de baratear a venda dos combustíveis.
A gente pode, por exemplo, reduzir os custos com a mão de obra. É só determinar que todo mundo que trabalha na Petrobras e nos postos de gasolina vai ficar sem carteira assinada, sem FGTS, sem férias, sem 13º, sem nada. Assim a gente vai garantir que preço volte a cair um pouco novamente e que ao mesmo tempo a Petrobras continue dando lucros para seus acionistas.

Ontem Carlos foi no restaurante de novo. O prato já tinha subido para 160 reais. Ele resolveu falar com o dono pra mandar o Zé Maria embora. Ele tem três garçons e pode ficar só com dois. Sem gastar com o salário do Zé, o dono vai poder baixar um pouco o preço da refeição. E se daqui a 15 dias o preço subir de novo, pode-se pensar noutra coisa… De repente tirar mais um garçom…

Waldemir Catanho é jornalista.