CUT  – Entrega do saneamento à iniciativa privada fracassou em vários locais e serviço teve de ser reestatizado. Projeto aprovado vai entregar gestão às empresas, sem controle nenhum do Estado

Com o apoio de empresas como Coca-Cola, Nestlé e Suez, o Projeto de Lei (PL) nº 4.162, de 2019, que institui o novo marco regulatório do saneamento básico no Brasil, foi aprovado no Senado na noite desta quarta-feira (24) e agora só depende da sanção de Jair Bolsonaro (ex-PSL) para virar lei. Bolsonaro já defendeu o projeto, portanto, deve sancioná-lo sem vetos.

Um dos argumentos para ‘vender a ideia’ de que o marco é necessário é que o projeto deverá expandir a cobertura de fornecimento de água potável a 99% e saneamento básico para 90% da população brasileira, mas na prática, as coisas devem funcionar de forma diferente.

O secretário de Meio Ambiente da CUT, Daniel Gaio, diz que o projeto, na verdade, vai facilitar o ingresso de novas empresas no setor – empresas que não têm compromisso com a qualidade do serviço prestado, não têm caráter social e só visam lucro.

“Não é verdade que abertura ainda maior para iniciativa privada vá melhorar ou ampliar o acesso. O que vemos hoje é o contrário. Em vários estados onde a iniciativa privada assumiu o serviço, o que se vê é empresas devolvendo a concessão à administração pública por não obterem lucros nas regiões mais distantes. É o lucro e não o serviço o foco das empresas”, afirma Daniel.

“Os defensores da proposta querem nos fazer acreditar que a população será beneficiada, mas as áreas mais carentes desses serviços estão em pequenos municípios, em áreas rurais e periferias das grandes cidades. São lugares onde as tarifas não cobrem custos e os serviços não dão o lucro pretendido pelas empresas privadas e por seus acionistas”, complementa Marcos Montenegro, engenheiro e coordenador do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).

O marco não contribuirá para o avanço do saneamento básico no Brasil por uma questão de interesses financeiros das empresas privadas, afirma o engenheiro.

Interesses privados sobre os recursos hídricos

O projeto é um ataque à soberania nacional porque, além de permitir que empresas explorem o serviço de saneamento, dá a empresas companhias o direito de controlar os recursos hídricos brasileiros como rios e lençóis freáticos e aquíferos, alerta Daniel Gaio. Ele lembra que isso ocorrerá em benefício das grandes empresas que utilizam água como matéria-prima, como a Coca-Cola, grande apoiadora do PL.

De acordo com Daniel, essas empresas passarão a controlar, indiretamente, o que hoje é um de nossos bens naturais mais abundantes, de forma descontrolada, isso pode trazer problemas à população no futuro.

“As empresas já vão ganhar com a taxa de serviços, mas o grande interesse é a gestão e o acesso privilegiado à água. Hoje, empresas e agronegócio já usam, de forma ilegal, esses recursos. É importante ter planejamento público na utilização para que não haja uma crise hídrica no futuro, mas o projeto entrega esse controle às empresas”, critica o dirigente da CUT.

Pressão em época de campanha

Daniel ainda afirma que o projeto representa um verdadeiro “assédio” a prefeitos e governadores. “Principalmente nas épocas de campanhas, essas empresas vão pressionar políticos locais para concessão dos serviços”.

O plano é federal, mas as empresas são estaduais e a outorga, ou seja, a concessão para exploração do serviço é municipal. Daniel afirma que já por este aspecto, o projeto deixa brechas para questionamentos jurídicos sobre a responsabilidade da prestação de serviços.

O dirigente ressalta que a contrariedade ao projeto não é perseguição à iniciativa privada e sim, à forma como o marco do saneamento vai escancarar o controle dos recursos ao setor privado.

“Investimento privado é importante para ampliar o saneamento. O que está em cheque com o projeto é a gestão e o controle dos recursos. As PPP´s [parcerias público-privadas] são necessárias por que há um déficit gigantesco a superar”. Daniel reforça também que grande parte da população grande não tem acesso à água e saneamento e um grande “pacto com a inciativa privada” teria que ser construído para diminuir esse déficit. “Mas a gestão, o controle, tem que ser do Estado”.

Para o Ondas, a universalização do acesso aos serviços deve passar pela garantia de recursos de financiamento público, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou de recursos do Orçamento Geral da União. “E sempre com profundo controle dos investimentos por parte da sociedade”, afirma Marcos Montenegro.

 

Não vai dar certo

Além de deixar as tarifas mais caras para uma população já empobrecida pela falta de uma política econômica do governo que gere emprego e renda, os serviços prestados tendem a piorar. Basta fazer uma análise de locais a iniciativa privada já opera, que na maioria, apresentam serviços de qualidade questionável.

Marcos Montenegro, do Ondas, lembra o caso de Manaus, onde a situação do saneamento, 20 anos após a entrega do serviço à iniciativa privada, é caótica.

“Há um grave risco de desestruturar a prestação atual, sem nenhuma garantia de que melhores serviços serão prestados. O quadro catastrófico do saneamento básico de Manaus, caracteriza bem os riscos de que falamos”, diz o engenheiro.

Daniel Gaio ainda cita o estado de Tocantins, onde 77 municípios passaram pela tiveram os serviços reestatizados por falta de investimentos das empresas que não viram lucro.  

O dirigente cutista explica que as empresas prestam serviço por um tempo, oferecem maus serviços, não cumprem contratos e então, devolvem a concessão ao estado depois de obter certo lucro.

E no Tocantins, completa Daniel, o governo estadual teve até de criar uma nova autarquia para retomar a prestação de serviço em saneamento para atender à população. Há ainda outros casos como a cidade de Itu, no interior de SP e cidades da baixada fluminense, onde a situação é semelhante.

E quem são essas empresas? Uma pesquisa do Instituto Mais Democracia, apurou que 58% dos grupos atuantes no setor no país são controlados por fundos de investimento e instituições financeiras. Dois dos maiores, BRK Ambiental (ex-Odebrecht Ambiental) e a Iguá Saneamento (ex-CAB, da Queiroz Galvão), são totalmente controlados por instituições financeiras.

O projeto de privatização do sistema de saneamento básico já fracassou em diversos países como França, que é líder no processo de reestatização (106 cidades), Alemanha e Inglaterra.