A publicação britânica “The Lancet”, uma das revistas mais relevantes na área médica, aponta Bolsonaro como um inimigo na luta contra a pandemia do coronavírus
Publicado 08/05/2020 – 13h31
São Paulo – Em meio à maior crise de saúde do século, o Brasil tem como inimigo quem deveria cuidar da população. A revista inglesa The Lancet, especializada em medicina, publicou editorial para alertar sobre os problemas do país latino-americano. No texto, o presidente Jair Bolsonaro é apontado como “maior ameaça” na luta contra o novo coronavírus.
O título dado pela Lancet no editorial, Covid-19 in Brazil: e daí?, remete a fala de Bolsonaro da semana passada. Quando questionado sobre milhares de mortos no país, ele reagiu: “E daí? Sou Messias, mas não sou Deus!” A revista, uma das mais importantes publicações científicas no mundo, ainda afirma que o presidente “perdeu a bússola moral”.
A disseminação do novo coronavírus chegou mais tarde no continente, afirma a revista. E, em pouco tempo, a situação já tomou proporções alarmantes no Brasil, ao contrário de outros países latino-americanos que estão conseguindo conter a doença. O Brasil tem uma das maiores taxas de contaminação e mortes do mundo, sendo que o país sequer chegou no pico da curva epidemiológica.
O editorial da Lancet saiu antes de Bolsonaro mais uma vez incitar a população a deixar o isolamento social. Depois de desprezar mortes e a pandemia, convocar protestos contra a democracia e causar aglomerações, ontem (7), disse vai “promover um churrasco para umas 30 pessoas” no fim de semana.
Soma-se ao descaso o presidente alimentar crises políticas que tiram o foco do combate à covid-19. A saída de dois ministros centrais do governo, Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), tomou o lugar do coronavírus nos noticiários. The Lancet aponta os fatos como “uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública”
Semeando confusão
A publicação ainda denuncia as benesses de Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a mineradores e agentes de devastação ambiental. “A crise sanitária afeta especialmente as 13 milhões de pessoas morando em favelas, aquelas que estão desempregadas e a população indígena do Brasil (…) O governo ignora e encoraja mineração ilegal e extração de madeira na Amazônia, apresentando novo risco para as populações locais.”
O editorial ainda aponta para uma grande subnotificação de casos por falta de testes, e afirma que Bolsonaro “não só continua semeando confusão as também desprezando e desencorajando abertamente as medidas sensatas de distanciamento físico e confinamento introduzidas por governos e prefeitos”.
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COVID-19 no Brasil : “E daí ?”
A epidemia da Covid-19 atingiu a América Latina mais tarde do que outros continentes. O primeiro caso registado no Brasil foi em 25 de Fevereiro de 2020. Mas agora, o Brasil tem o maior número de casos e mortes por Covid-19 na América Latina (105 222 infecções e 7288 casos, respectivamente, registrados no dia 5 de Maio), e estes números provavelmente representam uma enorme subestimativa. Ainda mais preocupante é o fato de a estimativa da taxa de duplicação do número de mortes ser apenas de 5 dias, e de o Brasil ser o país com a mais elevada taxa de transmissão (R0 de 2.81), de acordo com um estudo recente do Imperial College (Londres, Reino Unido) que analisou a taxa ativa de transmissão do COVID-19 em 48 países.
Neste momento, cidades grandes como São Paulo e Rio de Janeiro são os principais focos, mas há sinais de que a infecção está se deslocando para o interior dos estados, onde estão localizadas cidades menores, sem provisões adequadas de leitos com cuidados intensivos e ventiladores. Ainda assim, talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 para o Brasil seja o seu presidente, Jair Bolsonaro. Quando na semana passada os jornalistas o questionaram sobre o rápido aumento de casos, ele respondeu: “E daí? Lamento, quer que eu faça o quê? ” Ele não só continua semeando confusão, desprezando e desencorajando abertamente as sensatas medidas de distanciamento físico e confinamento introduzidas pelos governadores de estado e pelos prefeitos das cidades, mas também perdeu dois importantes e influentes ministros nas 3 últimas semanas.
Primeiro, no dia 16 de abril, Luiz Henrique Mandetta, o respeitado e estimado ministro da Saúde, foi despedido na sequência de uma entrevista televisiva, na qual ele criticou fortemente as ações de Bolsonaro e apelou para uma voz de unidade para evitar que os 210 milhões de Brasileiros fiquem totalmente confusos. Depois, no dia 24 de Abril, na sequência da exoneração do diretor geral da Polícia Federal por Bolsonaro, o ministro da Justiça Sergio Moro anunciou a sua própria demissão.
Crise política
Este ministro era uma das figuras mais poderosas do governo de direita do Brasil, nomeado por Bolsonaro para combater a corrupção. Esta desorganização no centro da administração do governo é não só uma distração com consequências fatais no meio de uma situação de emergência de saúde pública, mas também um forte sinal de que a liderança no Brasil perdeu o seu compasso moral, se é que alguma vez teve um.
Mesmo sem ações políticas em nível federal, o Brasil teria um desafio difícil no combate à Covid-19. Cerca de 13 milhões de brasileiros vivem em favelas, que frequentemente têm casas com mais de três pessoas por cômodo e reduzido acesso a água limpa. Recomendações para distanciamento físico e higienização são praticamente impossíveis de seguir nestas condições. Mesmo assim, várias favelas se organizaram para implementar medidas da melhor forma possível.
O Brasil tem um setor de emprego informal bastante grande, em que a maior parte das fontes de rendimento deixaram de ser opção perante as medidas implementadas. A população indígena já estava sob ameaça séria mesmo antes da chegada da Covid-19 porque o governo tem ignorado ou até incentivado a exploração ilegal de minas e de madeira na floresta amazônica. Agora há o risco destes mineiros e madeireiros introduzirem esta nova doença em populações remotas. Uma carta aberta publicada em 3 de maio, escrita por uma coligação global de artistas, celebridades, cientistas, e intelectuais, e organizada pelo fotojornalista Sebastião Salgado, alertou para um genocídio iminente.
Comunidade científica
E como tem reagido a comunidade científica e a sociedade civil, num país conhecido pelo seu ativismo e franca oposição à injustiça e desigualdades, e onde a saúde é um direito constitucional? Muitas organizações científicas, como a Academia Brasileira de Ciências e a Abrasco, há muito se opõem a Bolsonaro por causa dos cortes drásticos no financiamento da ciência e pela destruição da segurança social e serviços públicos em geral.
No contexto da Covid-19, muitas organizações lançaram manifestos dirigidos ao público, como por exemplo o “Pacto pela vida e pelo Brasil”, e escreveram declarações e apelos a oficiais do governo pedindo unidade e soluções conjuntas. Protestos da população são frequentes e incluem bater em panelas nas varandas durante comunicações da Presidência. Há muita pesquisa a ser feita, desde as ciências básicas à epidemiologia, e há uma produção rápida de equipamentos de proteção individual, respiradores, e kits de teste.
Estas são ações esperançosas. Contudo, a liderança no nível mais elevado do governo é crucial para rapidamente evitar o pior nesta pandemia, como tem sido evidenciado em outros países. Na nossa série de artigos publicados sobre o Brasil em 2009, os autores concluíram: “Em última análise, o desafio é político, exigindo o envolvimento contínuo da sociedade brasileira como um todo, para garantir o direito à saúde de todo o povo brasileiro.” O Brasil como país deve unir-se para dar uma resposta clara ao “E daí? “ do presidente. Bolsonaro precisa mudar drasticamente o seu rumo ou terá de ser o próximo a sair.