“Nossa tributação atual preserva a renda dos mais ricos e cobra impostos dos mais pobres”

São Paulo (SP) | 

 

Desde a primeira Constituição, de 1881, o sistema tributário brasileiro se mantém ancorado em uma configuração repleta de distorção e injustiças – Marcos Santos/USP Imagens

 

Taxar grandes fortunas ganhou nos últimos dias, felizmente, uma maior projeção nacional, especialmente no campo da esquerda, como uma das opções para o pagamento da “conta” das políticas sociais de enfrentamento à pandemia do coronavírus no Brasil. Embora muito necessária e com grande potencial arrecadatório, a taxação sobre grandes fortunas precisa ser uma bandeira que enseje uma discussão mais profunda sobre o atual sistema tributário brasileiro.

Podemos compreender o momento atual como uma “janela” histórica para apontar a contradição entre uma estrutura social que preze pelo bem-estar e pelas políticas sociais e o atual sistema de tributação regressivo brasileiro. Em um período relativamente análogo – guardadas, obviamente, as devidas proporções – o findar da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) iniciou uma discussão profunda sobres os rumos do capitalismo europeu e norte americano, arrasados pela guerra e com diversas consequências sociais e econômicas desse processo.

Para reconstruir as nações assoladas pela opção beligerante do período anterior, assim como colocar “freios” a lógica de que levou ao conflito, foi estabelecido um novo “pacto”, acordados na cidade de Bretton Woods, nos EUA, que foi responsável por uma relativa “regulação” do capitalismo. 

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Os “anos gloriosos” conhecidos como experiências de estado de bem-estar social combinaram a aceleração da taxa de crescimento das economias com redução das desigualdades, o que foi possível – em grande medida – pelas transformações na tributação. Os EUA já chegaram a ter uma alíquota máxima de imposto de renda de 90%, enquanto na Inglaterra já foi 98%. Nos Estados Unidos, por exemplo, a parcela da renda nacional nas mãos do 1% mais rico caiu de uma taxa de 16% antes da Segunda Guerra Mundial para menos de 8% depois dela, tendo ficado perto desse nível durante quase três décadas.

No Brasil, desde a primeira Constituição, de 1881, passando por outras quatro e chegando até a mais recente, de 1988, o sistema tributário se mantém ancorado em uma configuração repleta de distorção e injustiças. A forma como nosso sistema tributário é hoje organizado acaba se tornando um significativo fator de entrave ao processo de crescimento e desenvolvimento econômico e que agudiza a questão das desigualdades sociais. Nesse sentido, um sistema que já deveria ter sido rediscutido com a devida importância que a envolve a questão.

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Atualmente no Brasil cerca de 35% da composição do Produto Interno Bruto (PIB) é resultado da carga tributária, e está em consonância com a carga tributaria dos países desenvolvidos que fazem parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). 

Entretanto, o problema da carga tributária brasileira não se situa na sua proporção, pelo contrário, se bem utilizado estes recursos têm um potencial imenso de subsidiar politicas públicas importantes de interesse coletivo. Na verdade, o ponto crítico do nosso sistema tributário está na sua composição.

Em primeiro lugar, nosso sistema, historicamente, esteve ancorado na tributação indireta, e incide majoritariamente no consumo. Hoje, no Brasil, 49% do total da carga tributária vem do consumo, embutido nos preços dos produtos e serviços que adquirimos. Muito acima da participação que esta modalidade tem nos países mais desenvolvidos, que compõe somente 32% da carga tributária total.

Uma pessoa que ganha um salário mínimo paga o mesmo valor de tributos ao adquirir uma televisão, um remédio ou uma roupa, que uma pessoa que ganha mais de 20 salários mínimos. Ainda que a porcentagem e tributos seja a mesma, ela atinge uma proporção real muito maior dos salários de quem ganha menos, acaba tendo um impacto orçamentário muito maior. 

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Em contrapartida, a tributação indireta, ou seja, aquela que incide sobre a renda e o patrimônio, tem uma participação secundarizada na composição total da receita tributária. O imposto de renda e o imposto sobre patrimônio contribuem 18% e 4%, respectivamente, no total arrecadado. Além de que, o imposto de renda hoje tem uma estrutura que desonera as faixas de renda mais abastadas. Hoje temos uma alíquota máxima de 27,5% que incide igualmente para àqueles que ganham aproximadamente R$ 5 mil até os que ganham milhões.

Hoje do total dos declarantes de imposto de renda, os situados entre as faixas de 5 a 40 salários responderam 68% de toda a sua arrecadação. A partir daí, para as faixas de renda mais altas, vai se tornando altamente regressivo.

Outra grande “jabuticaba tributária”, como dizem os economistas aos se referirem as deformações do nosso sistema, diz respeito às isenções fiscais na fonte, como a de lucros e dividendos, fato que não é visto em lugar nenhum do mundo, salvo a Estônia. Hoje, mais de um terço da renda declarada, aproximadamente R$ 700 bilhões, se referem a lucros, dividendos, heranças e doações, e rendimentos do capital, o que explica em boa medida, a mais reduzida participação do Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF) na estrutura tributária brasileira.

Num país como o Brasil que 1% ganha 40 vezes mais que metade da população, nosso sistema tributário como está configurado acaba por, além de manter esse cenário, preservando a renda dos mais ricos e incidindo proporcionalmente mais entre a classe média e as camadas mais pobres da população.

Uma tributação mais progressiva permitirá, não só ampliar nossa capacidade de financiar e amparar políticas sociais e investimento públicos, mas fortalecer, efetivamente, o princípio da justiça social, desonerando os mais pobres.

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É preciso utilizar a janela aberta pela crise do “coronavírus” para pautar a importância de uma ampla e profunda reforma tributária. A nossa tributação atual, além da regressividade que apontamos acima, também repousa sobre uma estrutura complexa que entrava a competitividade, além de encontrar problemas para mediar os interesses de financiamento entre os entes da federação.

São elementos que se colocam na contramão do caminho do crescimento, da inclusão social e do fortalecimento do pacto federativo. Em outras palavras, na contramão do caminho que, mais do que nunca, necessitamos seguir para dar respostas eficazes aos desafios impostos ao nosso período.

Edição: Rodrigo Chagas