Vejo muitos amigos preocupados, com razão, diante do apoio que Bolsonaro ainda tem em parte significativa da população, não apenas porque pesquisas atuais indicam algo na casa dos 30%, mas também pelo eco que suas “ideias” ainda têm em redes sociais, parte da imprensa, grupos religiosos, alguns políticos.
Entre o primeiro e o segundo turno de 2018, o fosso que se abriu entre quem dizia #elenão e quem fazia arminhas com os dedos não apenas me parecia ser definitivo, como sempre me pareceu que devia mesmo ser, porque a defesa de Bolsonaro, ao menos pelos seus mais entusiasmados seguidores, com camisetas e berros, revelava uma postura inconciliável com qualquer patamar de civilidade, humanismo, tolerância, convivência, qualquer uma dessas palavras e posturas que eles odeiam.
Boa parte desse cordão que se formou em torno de Bolsonaro, numa observação empírica aqui pelas minha bandas, é formado por ex-malufistas, gente que achava que os tucanos eram “muito de esquerda” e sentiam falta de um representante “verdadeiramente de direita”, querendo dizer, com isso, que precisávamos de um “líder” capaz de mandar a polícia matar “bandido”; acabar com “privilégios” de trabalhadores, sindicalistas, políticos, servidores públicos etc.; defender “a família” e seus valores tradicionais contra a “balbúrdia” dos “comunistas” (desculpem o abuso das aspas, mas eles nunca usam essas palavras num sentido minimamente preciso).
A meu ver, não há vírus no mundo que os faça mudar de posição. Com tudo que acontece neste momento, com a morte batendo à porta de todo mundo, o que mais temem é que “a esquerda” aproveite para voltar ao poder – e “a esquerda” inclui a Globo, o PSDB de Doria, Rodrigo Maia, os ministros do STF e todo mundo que, por qualquer razão, diga que Bolsonaro não tem condições de ocupar aquela cadeira. É uma insanidade, uma obsessão, uma paranoia, e Bolsonaro sabe tirar proveito disso. Para essa turma, até mesmo a cruzada da cloroquina contra o comunismo faz sentido – e, infelizmente, acho que continuará assim.
Não é com eles, portanto, que devemos gastar nossa energia – tão escassa, tão necessária – neste momento. A principal preocupação é de luta por sobrevivência, em três sentidos pelo menos: o primeiro é sobreviver ao coronavírus; o segundo é sobreviver à radicalização da crise econômica precipitada pela pandemia; e o terceiro é sobreviver politicamente ao bolsonarismo, o que pode unir todos aqueles que, no amplo espectro das posições políticas democráticas, têm razões para se situar contra um governo que é a ameaça das ameaças, um governo que aposta na morte, na desigualdade, na ignorância e no autoritarismo.
É verdade que, para nosso pesadelo, Bolsonaro teve 57.797.847 votos em 2018. Mas devemos lembrar que, do outro lado do ringue, somando os votos de Haddad (47.040.906), brancos, nulos e abstenções, estavam 89.507.308 eleitores. Isso não é nada mecânico, eu sei, mas temos boas razões para acreditar que, de lá para cá, nenhum desses 89.507.308 passou para o outro lado, assim como, diante do desempenho bisonho do governo em tantos setores, podemos crer que parte daqueles 57.797.847 já engrossa as fileiras do lado de cá.
Os bolsonaristas e seus robôs gritam muito (a começar pelo próprio Jair, em rede nacional), então parece que eles estão por todos os lados e são maioria, mas não são. O enfrentamento da pandemia, neste momento, deve unir politicamente a maioria que se opõe às medidas de morte que Bolsonaro defende e, daqui em diante, servir como um marco na luta por direitos sociais num sentido amplo, com base no que a Constituição garante, como eixo principal para a reconstrução da vida neste país.
Os últimos anos foram de muitas derrotas, não apenas nas urnas. Assistimos ao desfile de múltiplas ofensas escancaradas a direitos conquistados duramente por gerações e gerações, que vão dos instrumentos democráticos fundamentais à proteção social dos trabalhadores, passando pelo SUS, pela Previdência e Assistência Sociais, pelas universidades públicas, por tudo que mais importa à maioria da população, como se tornou ainda mais evidente neste momento de pandemia, em que Estados em todo o mundo, para socorrer a população mais atingida pela “modernização” neoliberal, são obrigados a ressuscitar (sim!) instrumentos bem conhecidos dentro do que, até pouco tempo, chamávamos de Estado de Bem-Estar Social.
Por uma dessas ironias da História, os governos responsáveis por essas medidas, não apenas no Brasil, são aqueles que haviam sido eleitos para dar o golpe final nas estruturas da forma estatal distributiva e intervencionista. São presidentes, ministros e parlamentares ultraliberais que estão agora na encruzilhada, tendo que abrir para a população, em parte, cofres que, de outra maneira, não se destinariam a despesas tão estranhas aos propósitos do “Estado mínimo”, como o financiamento de pesquisas e o socorro direto dos trabalhadores informais e pequenas empresas, entre outras medidas que devem trazer muito desgosto pessoal a figuras como Paulo Guedes.
Foi um vírus, enfim, que nos trouxe até aqui. Os poderosos de sempre, no Brasil e no mundo, já perceberam que as cartas estão todas na mesa e não perdem tempo para forjar, nessas condições, os instrumentos que possam garantir ainda mais poder a eles daqui em diante. Em termos políticos nacionais, nem todos esses poderosos são representados por Bolsonaro, mas já perceberam que podem se aproveitar da incompetência e truculência do governo para saírem mais fortes.
Contra eles, quero crer que somos 89.507.308 “eleitores” e podemos ser muitos mais, agora que, do outro lado, temos um adversário que cada vez mais se revela inimigo. Mas aí também está um problema: nossa força não pode ser medida apenas na urna, que está longe se pensarmos nas urgências que a pandemia agudizou, e, além disso, na eleição esse número provavelmente vai se quebrar.
Insisto nesses números, entretanto, para lembrar que essa força existe e que devemos pensar numa forma de organizá-la desde já, porque o inimigo não faz quarentena. Esse momento excepcional de ressuscitação do “Estado máximo”, capaz de prover sobrevivência à população, à pesquisa científica, ao pequeno empresariado etc., e também de forçar grandes empresas a manter empregos e salários, se depender da mentalidade ultraliberal, não tenhamos dúvida de que será apenas o “canto do cisne” de tudo que se opõe aos interesses das elites e do grande capital.
É hora, portanto, de mostrar como essas medidas “emergenciais” podem e devem ser permanentes (como a “renda básica de cidadania”, há tanto tempo defendida por Eduardo Suplicy, ou o “salário mínimo” para o trabalhador uberizado), atravessando essa fase de pandemia para, num futuro próximo, servir de base para reivindicações mais amplas da população. É só uma brasa, mas pode pegar fogo.
Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.