Edição 153 | Brasil, por Anne Vigna – 31 de Março de 2020.

 

Formado na Escola de Chicago, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não esconde suas convicções liberais. Segundo ele, a intervenção do Estado prejudica a economia: o jeito então é recorrer à sabedoria do mercado… Ainda que Brasília negue o projeto de privatizar a Petrobras, a joia nacional começa a sentir os efeitos dessa visão de mundo

 

Rio de Janeiro- RJ- Brasil- 22/01/2015- Trabalhadores da Comperj em implantação no município de Itaboraí, na região metropolitana do Rio, fazem manifestação em frente ao edifício-sede da Petrobras no centro do Rio.( Tânia Rego/Agência Brasil)

Vinte mil funcionários mobilizados, 130 usinas, plataformas e refinarias bloqueadas. Durante 25 anos, o setor petrolífero brasileiro não conheceu uma greve como a de fevereiro de 2020. Segundo Sérgio Borges Cordeiro, membro da direção da Federação Única dos Petroleiros (FUP) do estado do Rio de Janeiro, o movimento representa o desejo, por parte dos grevistas, de “alertar a população” para uma ameaça: “O governo quer privatizar a Petrobras”. E o que é a Petrobras? A gigante brasileira do ouro negro, a maior empresa da América Latina, que nasceu mista, mas, em 1995, era 75% pertencente ao Estado, contra 50,2% hoje.

De acordo com o governo, no entanto, não há venda da Petrobras. Quando, em julho de 2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou seu “ambicioso” programa de venda de empresas públicas, ele mencionou dezessete companhias, de serviços postais a bancos, passando pela loteria e a Casa da Moeda (responsável pela impressão do dinheiro). A lista incluía algumas “joias”, como o maior produtor de eletricidade da América Latina, a Eletrobras, e o maior porto da América Latina, localizado em Santos. Mas nada da Petrobras.

Estariam os funcionários da empresa paranoicos? Nem tanto. O nome da empresa não foi dito, mas estava na cabeça de todo mundo. Guedes nunca escondeu suas ambições em relação a isso e, um mês depois, confirmou a “intenção de privatizar a empresa”.1 Mas esse é um projeto impopular, e não apenas dentro das Forças Armadas:2 segundo pesquisa do Instituto Datafolha, realizada em agosto de 2019, 65% dos brasileiros se opõem à privatização da Petrobras (contra 27% que a desejam). O que fazer quando se planeja uma operação que a população desaprova? Negar o plano: “A privatização da Petrobras não está nos planos do governo federal”, tentou tranquilizar Salim Mattar, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, em fevereiro de 2020.

Então há ou não há privatização? No fim das contas, a resposta a essa pergunta importa pouco, pois, para além das declarações contraditórias do governo, a venda da empresa já começou. “Parece uma privatização ‘por partes’, um pedaço de cada vez”, explica Felipe Coutinho, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet): “Claro que a direção prefere falar em ‘estratégia de desinvestimento’”. E qual é o motivo dessa ação em pequenas etapas? Um deles é o tamanho da Petrobras, uma joia que poucos bolsos podem bancar. Mas, acima de tudo, a necessidade de contornar o Congresso: “Vender a companhia de uma só vez implicaria que a venda passasse por aprovação parlamentar, exigência para a privatização de qualquer empresa pública. Mas, para isso, o governo não conta com maioria entre deputados e senadores”.

Margem de manobra financeira

Fatiar a gigante do petróleo como quem fatia uma linguiça nem sempre foi o projeto do Brasil. A ideia surgiu no governo interino de Michel Temer, em 2016, após a destituição da presidenta Dilma Rousseff. Até então, a Petrobras tinha um papel fundamental na maneira como o Estado dirigia a economia, especialmente desde a descoberta, em 2005, de gigantescos depósitos oceânicos localizados entre 5 mil e 7 mil metros de profundidade, abaixo de uma camada de sal cuja espessura pode atingir 2 mil metros: as reservas do pré-sal. Enquanto Luiz Inácio Lula da Silva esteve no poder (2003-2010), o Brasil viu na Petrobras um instrumento de estímulo ao desenvolvimento econômico do país: para ele, a imensa riqueza petrolífera deveria permitir o desenvolvimento de estaleiros, estimular a pesquisa e o desenvolvimento, impulsionar o florescimento de pequenas indústrias subcontratadas, criar milhares de empregos. Em suma, facilitar a diversificação do parque industrial brasileiro. Na época, a Petrobras combinava a expansão de sua produção de petróleo com a de suas refinarias: produção, processamento e distribuição eram pensados como um todo.

A destituição de Dilma Rousseff, no dia 31 de agosto de 2016, foi um ponto de inflexão. A nova direção da empresa decidiu se concentrar na exploração das reservas do pré-sal, a fim de abrir uma margem de manobra financeira, mesmo que isso significasse vender a maior parte de suas atividades de “logística”. Em 2017, 70% de seus 34 mil postos de gasolina (BR Distribuidora) foram colocadas no mercado. Em 2019, 90% do capital da Transportadora Associada de Gás (TAG), sua rede de 4.500 quilômetros de gasodutos no norte do país, caiu nas mãos da francesa Engie e da canadense Caisse des Dépôts, em troca do equivalente a 7,8 bilhões de euros. A Petrobras encerrou todas as atividades no exterior: na África (Nigéria, Angola, Gabão, Benin e Guiné Equatorial); na América Latina (Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia e Paraguai), onde abandonou suas atividades de joint venture na exploração e distribuição de petróleo; e nos Estados Unidos, com a venda da refinaria de Pasadena à Chevron por 509,7 milhões de euros. No final de fevereiro de 2020, o presidente da companhia, Roberto Castello Branco, anunciou a venda de 51% do capital da Gaspetro, uma rede de distribuição de gás de 10 mil quilômetros. Ele se comprometeu a vender, neste ano, oito das treze refinarias que a Petrobras possui no Brasil. A empresa também planeja abandonar suas usinas de fertilizantes nitrogenados, seus projetos na área petroquímica e de biocombustíveis, além de vender suas operações onshore (em terra) e offshore, em águas pouco profundas. Mas não existe “privatização”!

A estratégia deu resultado: em janeiro de 2020, pela primeira vez na história, a Petrobras ultrapassou a barreira de 4 milhões de barris de petróleo equivalente por dia, um salto de 100% em relação a 2012.3 Segundo relatório da agência especializada em energia Rystad Energy,4 a Petrobras é a empresa de petróleo cuja produção mais cresce no mundo. A partir de 2030, ela também pode se tornar a companhia nacional com maior produção do planeta, superando a russa Rosneft e a chinesa PetroChina.

Seus lucros, em 2019, também atingiram um recorde. Em 2013, o faturamento da companhia foi de 50 bilhões de euros, com um lucro 4,7 bilhões de euros. Em 2019, o faturamento aumentou 21%, e o lucro, mais de 130%! – resultado ao mesmo tempo da venda de ativos, do aumento da produção e da redução dos custos. No mesmo ano, a massa salarial foi reduzida em 8,9% (com um total de 22.900 postos de trabalho cortados em quatro anos), mas os dividendos de 2020 foram anunciados em alta: 2,7 bilhões de euros, contra 1,6 bilhão em 2018.

Apesar dos números sedutores, William Nozaki, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep), não vê motivo para aplausos: “A Petrobras está fazendo mudanças que vão na contramão de todo o resto no setor, seja ele público ou privado. Enquanto as outras empresas buscam ‘integrar’ suas atividades, controlar o conjunto da cadeia produtiva, a distribuição, a venda e os produtos derivados, em suma, estar presentes ‘do poço à bomba’, a Petrobras agora se contenta em exportar petróleo bruto. Uma renúncia ainda mais incompreensível quando se considera que a empresa possuía instalações que permitiam não se limitar à produção”.

Consequência: desde 2016, o Brasil elevou suas exportações de petróleo bruto, de menor valor agregado, mas passou a importar mais gasolina e óleo diesel. A maior parte das exportações vai para a China, e 60% da gasolina vem dos Estados Unidos. Daí o apelido pouco lisonjeiro de “nova colônia no século XXI” que a Aepet deu ao país. Outrora, o Brasil exportou cana e importou açúcar; hoje, exporta petróleo bruto e importa gasolina. Essa lógica parece ainda menos convincente neste momento em que o preço do barril está afundando, por causa da crise do coronavírus.

A justificativa da Petrobras para essa estratégia de desinvestimento é o endividamento muito elevado, resultado, segundo sua direção, da má gestão e da corrupção, revelada a partir de 2014. Em 2015, o endividamento da companhia alcançou US$ 100 bilhões, para um volume de negócios de US$ 70 bilhões: ela pode, portanto, ser considerada uma das empresas mais endividadas do mundo. Para Adriano Pires, consultor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (agência privada de consultoria), a constatação é simples: “A Petrobras foi destruída pelo PT. Eles controlavam o preço na bomba, supostamente para conter a inflação, e obrigaram a empresa a construir refinarias no Nordeste, com o objetivo de criar empregos artificialmente. Isso sem falar da corrupção”. Em outras palavras, o intervencionismo estatal e sua tentativa de usar a grande empresa para garantir o desenvolvimento do país teriam levado ao colapso, estimulando a prevaricação.

Em primeiro lugar, não assustar o mercado

Professor de Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e autor de um estudo sobre o assunto,5 Gilberto Bercovici propõe outra leitura da situação: “A falência da Petrobras é um mito para justificar sua privatização”. Lembrando que uma dívida não é necessariamente ruim, desde que sirva para preparar uma atividade futura, ele explica que a dívida da Petrobras “é resultado de um investimento de quase 272 bilhões de euros entre 2009 e 2014, com o objetivo de dominar a tecnologia de perfuração em águas muito profundas. Ela não tem nada a ver com corrupção, como querem nos fazer crer. A dívida era grande, mas os projetos eram rentáveis. E isso pode ser constatado hoje”. No mundo do petróleo, a Petrobras é considerada o que há de mais avançado em termos de exploração de depósitos deep offshore, ou ultraprofundos.

No entanto, a decisão de vender a empresa tem menos relação com uma questão de raciocínio econômico do que com uma leitura ideológica do mundo: o atual presidente da Petrobras foi nomeado pelo ministro da Economia, de quem é amigo íntimo. Ambos se formaram na Universidade de Chicago no fim dos anos 1970. Monetaristas convictos, eles acreditam que o Estado não pode competir com o mercado: assim, defendem, mais ou menos discretamente, uma aceleração das privatizações. E o chefe de Estado, Jair Bolsonaro, eleito em 2018, os ouve: seu governo vendeu as ações da Petrobras detidas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) e pela Caixa Econômica, reduzindo o controle estatal da companhia para 50,2%, contra 62,7% quando Bolsonaro assumiu a Presidência.

Da mesma forma, após a descoberta das reservas de petróleo do pré-sal em 2005, o Brasil as vendeu em leilão, reservando à Petrobras o “direito preferencial” sobre a concorrência, o que era justificado pelos investimentos feitos pela companhia para descobrir o “butim”. Ela adquiriu os principais blocos à venda. O governo atual, além de desejar abolir um dispositivo que considera um “privilégio” da Petrobras “diante de seus concorrentes”,6 multiplicou os leilões das reservas. De acordo com os cálculos do Ineep, a Exxon, a Total e a BP passaram a deter, respectivamente, 11 bilhões, 6 bilhões e 4 bilhões de barris de petróleo a serem explorados na bacia do pré-sal. Ansioso para atrair as multinacionais, o Brasil também reduziu sua exigência de conteúdo local – a exigência, imposta às empresas estrangeiras, de utilizar ferramentas e tecnologias do Brasil para explorar as reservas.

Segundo a ideologia em curso no país, a concorrência e a abertura favorecem o investimento, sem necessidade de imposição de regras: “Regulamentação excessiva assusta o mercado”, explica Décio Oddone, presidente da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), responsável pela regulação do mercado de energia no Brasil. “Estou fazendo de tudo para abrir esse setor à concorrência, a fim de aumentar os investimentos que a Petrobras não pode mais assumir.”

Para William Nozaki, a declaração é risível: “Sempre ouvimos dizer que o setor privado pode ‘finalmente’ investir, depois que o público abre espaço para isso. Mas a história nos ensina que as coisas não são bem assim”. Em 1954, o presidente Getúlio Vargas queria criar uma “companhia nacional de petróleo, mas de capital privado”. O capital privado não veio, pouco interessado na exploração de petróleo em um território tão grande. Foi por isso que nasceu a empresa pública Petrobras, que teve de investir, sozinha, durante vinte anos, até descobrir as primeiras reservas.

Nada mudou em 1997, quando o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso acabou com o monopólio da Petrobras sobre os hidrocarbonetos do país: o setor privado não substituiu o público para a exploração. “Durante a década de 1997-2007”, continua Nozaki, “ninguém se arriscou no campo de prospecção em águas profundas. A Shell e a Chevron estudaram o assunto por um tempo, depois recuaram, considerando os riscos grandes demais. Assim, a Petrobras se lançou sozinha.”

Resumindo: para o setor público, a exploração cara; para o privado, a lucrativa.

*Anne Vigna é jornalista (Rio de Janeiro).

1 “Guedes retoma processo de privatização da Petrobras iniciado na gestão Temer”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 22 ago. 2019.

2 Ler Raúl Zibechi: “Que veulent les militaires brésiliens?” [O que os militares brasileiros querem?], Le Monde Diplomatique, fev. 2019.

3 Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

4 Ucube Research and Analysis, Rystad Energy, nov. 2019.

5 Gilberto Bercovici, “A inconstitucionalidade do regime de desinvestimento de ativos das sociedades de economia mista”, Revista de Direito da Advocef (Associação Nacional dos Advogados da Caixa Econômica Federal), Brasília, 2019.

6 “Perda de preferência não incomoda Petrobras”, Valor Econômico, São Paulo, 21 jan. 2020.