Rever a concepção de Estado neutro, indiferente, que age de modo independente. Essa é a proposta apontada por em seu novo livro intitulado Estado e forma política (São Paulo: Boitempo Editoria, 2013). “O Estado é uma forma necessária da reprodução capitalista. Daí, sua ação ser capitalista, mesmo quando dá direitos aos trabalhadores ou ampara os explorados com benefícios sociais. Por isso, é verdade que o Estado regula os conflitos entre classes e grupos. Mas, acima disso, o Estado os constitui. Dentre as formas sociais, a forma política estatal é necessária para que a própria dinâmica de interação capitalista se estabeleça”, menciona em entrevista publicada originalmente na Revista IHU On-Line.
A subordinação da política à economia demonstra que “Estado e capitalismo são intrínsecos em sua existência: em todas as fases internas da história desse modo de produção, há uma relação entre a política e interesses do capital. Assim, a política estatal está subordinada à economia desde que há Estado e capitalismo”, esclarece. Em casos de crises financeiras e econômicas, como as de 2008, o Estado age por “fortalecer alguns grupos e frações do capital e da classe trabalhadora em face de outros, o que acaba por dar nova dinâmica às mesmas formas que geraram a crise”, assinala.
No caso brasileiro, acentua, “por mais que o pêndulo político possa ter sido parcialmente mudado no Brasil e em alguns países da América do Sul, para políticas menos neoliberais e mais desenvolvimentistas, esse processo é contraditório, eivado de impedimentos e contramarchas, tanto no plano nacional quanto no internacional”.
Graduado e doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de São Paulo – USP, Mascaro é professor da Faculdade de Direito dessa instituição, além de lecionar nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É membro do Conselho Pedagógico da Escola de Governo – USP.
Confira e entrevista:
Fala-se que as políticas são capturadas pelos interesses financeiros. Como se iniciou esse processo de subordinação da política à economia? Trata-se de uma tendência global?
Estabeleço, em meu livro intitulado Estado e forma política, uma reflexão a respeito das necessárias relações entre as formas da política estatal e as formas do capitalismo. A existência de um domínio político à parte da interação imediata entre exploradores e explorados é um dado inexorável do tipo de sociabilidade capitalista. Por isso, Estado e capitalismo são intrínsecos em sua existência: em todas as fases internas da história desse modo de produção, há uma relação entre a política e interesses do capital. Assim, a política estatal está subordinada à economia desde que há Estado e capitalismo. Claro está que esse é um jogo complexo: a captura das instituições estatais se faz permeada por formas e por lutas sociais. Há muitas fases e diferentes arranjos dentro do capitalismo. Por isso, trata-se de uma lógica variável.
É possível alterar essa lógica?
Sim. O Estado é inexoravelmente capitalista, mas o capitalismo não é inexorável na sociabilidade humana. Então, as possibilidades de sua mudança podem ser entendidas de duas maneiras: de um lado, uma alteração interna ao Estado, ainda dentro do modo de produção capitalista, dando mais ênfase a interesses, grupos, setores ou classes; de outro lado, uma mudança do próprio modo de produção capitalista. A tendência das lutas sociais – dadas as dificuldades extremas de transformação e as barreiras conservadoras persistentemente estabelecidas – costuma ser a de buscar tratar do imediato: ganhar ou influenciar o Estado, pender o capitalismo para o bem-estar social, contra o neoliberalismo. Mas esse jogo, por mais difícil, está ainda dentro dos próprios marcos capitalistas, daí sua intermitência. As classes trabalhadoras e exploradas do mundo, quando lutam por aumentos de direitos e por ganhos dentro das formas sociais do capitalismo, haurem vantagens imediatas, mas persistem em uma dinâmica de reforço da exploração. O caso do mundo ocidental, posteriormente à Segunda Guerra Mundial, é exemplar. O bem-estar social capitalista foi o horizonte das lutas dos trabalhadores. Mas, hoje, o capital destrói esse mesmo bem-estar. Ganhar parcialmente não é ganhar persistentemente. Daí, mudar para superar o próprio capitalismo deve ser a meta da luta progressista do mundo.
O senhor propõe que seja entendida de outro modo a articulação entre neoliberalismo e Estado. Trata-se da relação intrínseca entre ambos?
Pensa-se que o neoliberalismo é a retirada do Estado da economia. Pelo contrário. Só há capitalismo com Estado. O que existe, então, é um específico arranjo político no neoliberalismo. O Estado é muito ativo para privatizar, garantir o capital financeiro, diminuir ganhos e direitos sociais, perseguir e encarcerar pobres e minorias, promover guerras. De tal sorte, o neoliberalismo, por mais diferente que seja, é ainda mais uma das fases que passam pelas mesmas formas: valorização do valor, Estado e direito.
Qual a participação do Estado nesta relação entre política e economia na esfera global? O Estado, antes de ser um regulador, acaba sendo um facilitador da manutenção do atual sistema capitalista que, diante das crises, se fortalece?
Muitos consideram que o Estado é um ente neutro, indiferente, que age voluntariamente ou de modo independente, ao léu de interesses variados. Não é isso o que acontece. O Estado é uma forma necessária da reprodução capitalista. Daí, sua ação ser capitalista, mesmo quando dá direitos aos trabalhadores ou ampara os explorados com benefícios sociais. Por isso, é verdade que o Estado regula os conflitos entre classes e grupos. Mas, acima disso, o Estado os constitui. Dentre as formas sociais, a forma política estatal é necessária para que a própria dinâmica de interação capitalista se estabeleça. O combate à crise por parte do Estado se faz por meio de ações que mudam o acessório, salvando o principal. Assim, em situações de grande crise do capital, como as atuais, o Estado age por fortalecer alguns grupos e frações do capital e da classe trabalhadora em face de outros, o que acaba por dar nova dinâmica às mesmas formas que geraram a crise.
Como essa relação entre política e economia é desenvolvida no Estado brasileiro?
Ao mesmo tempo em que constituem uma tessitura interna, os Estados se inserem numa dinâmica internacional. O Brasil está mergulhado nas condições do capitalismo contemporâneo, pós-fordista, neoliberal e em crise estrutural. Por mais que o pêndulo político possa ter sido parcialmente mudado no Brasil e em alguns países da América do Sul, para políticas menos neoliberais e mais desenvolvimentistas, esse processo é contraditório, eivado de impedimentos e contramarchas, tanto no plano nacional quanto no internacional.
Em que sentido a política é compreendida como derivação da forma mercadoria?
A sociedade capitalista não é uma soma de relações ocasionais: a própria constituição das subjetividades, a posição dos indivíduos, grupos, classes, a ideologia, os valores, a cultura, mas, em especial, o tipo de interação produtiva, tudo isso opera mediante formas sociais estabelecidas. Assim, é-se burguês ou trabalhador assalariado porque a subjetividade se apresenta enredada em um mundo com formas dadas: ser possuidor ou não do capital envolve ser sujeito de direito, homem, mulher, nacional ou estrangeiro, lastreado no Estado e nas suas estruturas políticas. Mas essas formas sociais não são ocasionais: Marx, em O capital, desvenda a forma-valor como base do tipo de sociabilidade capitalista. A mercadoria é o seu átomo. Daí, é necessário compreender, como já o fizeram também os mais avançados teóricos marxistas, que o Estado tem relação necessária com essas formas. Estabeleço em meu livro uma reflexão em torno da derivação inexorável entre a forma política estatal e a forma mercadoria. Pachukanis [1] e a melhor tradição dos teóricos do direito do marxismo, como Márcio Bilharinho Naves [2], fezeram historicamente o mesmo: a forma jurídica é decorrente da forma mercantil.
Em que sentido este seu livro propõe um novo estudo da teoria do Estado e da ciência política?
Minha reflexão tem base em um amplo debate acerca do Estado, que se estabeleceu no marxismo e nas perspectivas teóricas críticas a partir da década de 1970. Com o neoliberalismo, tal debate foi relativamente esquecido pelas ciências sociais contemporâneas: na atualidade, o pendor da teoria tem sempre se revelado para a mensuração quantitativa, tendo por horizonte as instituições já dadas e sua dinâmica de curto prazo. Mas um entendimento do Estado a partir das formas da sociabilidade capitalista repõe o campo da política atrelado à reprodução social, abrangendo as estruturas da totalidade. Nesse sentido, é preciso avançar na análise das formas sociais do capitalismo. A partir dos seus átomos ou elementos fundamentais, como a forma-valor e a mercadoria, é que se devem entender as formas da política. Trata-se de uma leitura crítica, porque não louva o Estado nem o capitalismo. Mas penso ser o horizonte de mundo necessário, dando ensejo à grande crítica transformadora de nossos tempos.